Essa viagem a bordo do veleiro Pangeia, entre Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, e Florianópolis, no litoral norte de Santa Catarina, fora planejada para completar o maior esforço de coleta de larvas de coral-sol jamais empreendido em águas brasileiras, que teve sua primeira etapa entre Recife, em Pernambuco, e Ilhabela, em São Paulo (link para expedição Recife-Ilhabela).
Dessa vez, porém, além dos pontos de amostragem costeiros, tínhamos o desafio de navegar por águas oceânicas a 70 milhas marítimas da costa (cerca de 130 quilômetros), bem na quebra da Plataforma Continental, onde a profundidade do mar alcança 200 metros. Nosso objetivo nessa paragem distante era coletar amostras de água ao lado da plataforma de extração de petróleo batizada de Mexilhão.
Estudar as águas adjacentes às plataformas é algo muito importante na compreensão da dinâmica de dispersão de larvas de coral que possam se originar de indivíduos fixados nas estruturas submersas dessas unidades marítimas de produção.
O veleiro Pangeia, comandado pelo capitão Beto Fabiano, deixou o abrigo da enseada de Santa Teresa por volta das 11h com vento moderado soprando do quadrante leste e só chegou à primeira estação de coleta, a ponta da Pirabura, no final do dia, com mar já mais agitado pelo vento constante e céu carregado para chuva.
Tais condições do tempo acrescentaram elementos ainda mais simbólicos a esse local famoso por ter sido palco de um dos maiores desastres da história das navegações. Pois bem, ali nas proximidades da ponta de rochas nuas batidas pelas ondas a cerca de 15 metros abaixo da quilha do nosso veleiro estavam os destroços do navio espanhol Príncipe de Astúrias.
A embarcação naufragou ao se chocar com os costões que podíamos avistar com nitidez a 50 metros do Pangeia enquanto fazíamos o primeiro da série de 15 arrastos com a rede de plâncton planejados para a viagem de seis dias.
Na madrugada do dia 5 de março de 1916 condições adversas de tempo, com visibilidade baixa devido a um nevoeiro, levaram a alguns erros de navegação que resultaram no choque do transatlântico a vapor de 150 metros de comprimento com as pedras da costa de Ilhabela e, posteriormente, a seu naufrágio. Infelizmente, o acidente custou a vida de mais de 400 pessoas e leva o título de maior naufrágio do Atlântico Sul.
Nossa motivação para coletar amostras de água sobre os destroços do Príncipe de Astúrias em uma área de navegação delicada em mar agitado vem das evidências de que estruturas artificiais submersas, sobretudo naufrágios, formam substratos muito adequados ao recrutamento de larvas e fixação de novas colônias de coral-sol. Esses substratos funcionariam como trampolins para a invasão da espécie.
Foi um alívio terminar o arrasto e começar a afastar o veleiro daquela costa. Estávamos navegando com todas as velas e fazíamos boa velocidade. Já era quase noite quando pegamos o rumo direto para nosso objetivo mais distante, a plataforma de Mexilhão. Porém, a intensidade crescente do vento de leste e as ondas criadas por ele vinham bem pela nossa proa, condição em que o barco sofre muito com as pancadas das ondas e não desenvolve boa velocidade.
Por volta das 19 horas, quando as ondas passaram a estourar sobre o convés, decidimos arribar de volta a Ilhabela para passar a noite em um abrigo até a melhora no estado do mar. Foi uma volta tensa, noite sem lua e muita chuva, mas conseguimos entrar em segurança no Saco do Sombrio.
No dia seguinte seguimos viagem e na mesma noite fazíamos a coleta mais distante, nas proximidades da plataforma de Mexilhão. Muito interessante passar a rede de plâncton no meio do vasto oceano, na escuridão da noite e tendo como referência as miríades de luzes fortíssimas da plataforma.
Na mesma noite seguimos novamente no rumo da costa, passando pela Laje de Santos, de onde se iniciou uma série de estações costeiras, sendo a última na costa da Reserva Biológica do Arvoredo, logo ao norte de Florianópolis.
Na rotina de bordo, os pesquisadores Yann e Henrique cumpriam com precisão, sob qualquer condição de mar, as tarefas de passar a rede, coletar amostras de água para filtragem do plâncton e acondicionamento e catalogação de todo o material coletado.
Entramos a noite no canal norte da Ilha de Santa Catarina. Uma navegação tensa devido ao trânsito intenso de embarcações de pesca e presença de baixios. Quando finalmente chegamos ao abrigo, na pacata Santo Antônio de Lisboa, a boa sensação de conclusão de uma missão científica inédita: coletas de amostras de água para o estudo de larvas de coral-sol, desde Recife, em Pernambuco, até a Ilha do Arvoredo, em Santa Catarina. Um passo importante no aprimoramento dos modelos de dispersão do coral invasor.
Luciano Candisani